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Olhando para o vazio
Este ano eu comecei um curso sobre como produzir contos e lembro da indicação de leitura de um conto famoso, 'Amor', de Clarice Lispector. Ana, a personagem principal, é uma mulher comum, mãe, esposa e a responsável pelos trabalhos de casa. O conto vai nos mostrando aos poucos como as escolhas que ela fez para chegar até ali e para se manter onde está, parecem ter sido feitas sem muito pensar, na busca de uma segurança ilusória que a sociedade a prometera. Não é que ela tinha uma vida que a fazia sofrer, mas claramente também não a fazia feliz.
"Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite — tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca." Clarice Lispector
Recentemente também participei de um encontro realizado por duas psicólogas no qual o objetivo era discutir sobre um livro e escrever sobre os sentimentos que nos atravessavam. O livro dessa vez era o 'Caderno Proibido', de Alba de Céspedes, e de novo, encontro a história de uma mulher comum, mãe, esposa e trabalhadora. Mas dessa vez, a autora nos convida a perceber junto com a personagem, as nuances de sua vida.
Entre tantas coisas que essas duas personagens têm em comum, queria aqui chamar a atenção para o momento em que elas se dão conta de suas vidas, tomam consciência de suas escolhas e de suas condições que muitas vezes parecem limitantes e em outras, privilégios. Ana começa a perceber isso de forma inusitada: quando vê um cego no ponto do bonde mascando chiclete. Já Valeria, a partir da compra de um caderno vendido ilegalmente (a história se passa em Roma pós-guerra e ela não poderia comprar cadernos aos domingos, mas de forma impulsiva ela compra mesmo assim).
Nighthawks (1942) de Edward Hopper
Leiam o conto de Clarice para entenderem melhor, mas o fato é que aquele momento em que Ana percebe algo que a tira do foco cotidiano, em um momento de descuido, ela enfim precisa encarar sua vida e ver o que não pode mais ser desvisto. É como se antes ela tentasse preencher os seus vazios existenciais com os afazeres domésticos e agora, ali avistando aquele homem cego mascando chiclete, ela fosse pega de surpresa e por isso, não tivesse nada para preenchê-los. Ela precisa entrar nos seus vazios. Parece horrível, não é mesmo? E realmente é, mas é o que possibilita a ela ter mais consciência e por isso, mais domínio de sua própria vida.
Já Valéria pega seu caderno proibido e decide fazer dele um diário. E é a partir de suas escritas que conhecemos sua história. Quando ela se permite ter um tempo e algo material para concretizar seus pensamentos, ela começa a refletir sobre sua vida e assim a ter mais consciência dela. É bonito acompanhar ela percebendo suas infelicidades e felicidades antes impossíveis de serem vistas.
"Aprender a compreender as coisas mínimas que acontecem todos os dias talvez seja aprender a compreender realmente o significado mais recôndito da vida." Alba de Céspedes
Acredito que essas duas histórias ilustram bem como esses momentos de reflexão são importantes para termos consciência da própria vida, o que possibilita ter também mais consciência das próprias decisões. Quando colocamos nossa vida em perspectiva, pensamos sobre ela, temos a possibilidade de ressignificar, perceber por outros ângulos e assim decidir sobre o agora. A terapia não é apenas sobre isso, mas esse exercício acontece muito no meu consultório, assim como na minha análise pessoal. E é impressionante o quão transformador esse movimento pode ser. Mas sem dúvidas, a terapia é um espaço seguro para olhar a nossa vida de frente, inclusive para nossos vazios.
Elisa Terra
Psicóloga
